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Derrota eleitoral da esquerda em Portugal e perspetivas de luta

  • Ricardo e Pedro
  • Jul 20
  • 20 min read
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– Artigo publicado na página do Projeto para uma Internacional Marxista Revolucionária (PIMR), a 15 de Junho de 2025 –


A 18 de maio de 2025, o povo português foi chamado pela terceira vez desde 2022 a “escolher os representantes da classe opressora que o vão representar e oprimir no parlamento”. Face à exigência de explicações sobre a atividade da sua empresa familiar com empresas dependentes de concessões do Estado, o primeiro-ministro (PM), Luís Montenegro, apresentou uma moção de confiança à Assembleia da República (AR) que sabia que seria chumbada pela maioria da oposição, implicando a demissão do governo. Consciente de um contexto económico favorável, que é expectável que piore, Montenegro entreviu um bom momento para reforçar o peso eleitoral da Aliança Democrática (AD) e enfraquecer o Partido Socialista (PS), que em 2024 tinha obtido quase tantos votos e deputados como a AD. De facto, durante o seu ano de mandato, desde março de 2024, o governo AD usou parte do excedente orçamental, herdado do governo do PS, para baixar alguns impostos e para ceder a algumas reivindicações de várias categorias profissionais da função pública, como polícias e professores, que se tinham mobilizado por melhorias nas suas carreiras.


Tendo transformado as eleições num plebiscito à ética do PM e responsabilizando o PS pela instabilidade política, a tática da AD resultou parcialmente, obtendo mais 140 mil votos e 11 deputados do que nas eleições antecipadas do ano anterior, ficando assim com 31,8% dos votos e 91 deputados em 230. Contudo, o ganho foi insuficiente para a maioria absoluta, mesmo com os 5,4% e 9 deputados da Iniciativa Liberal (IL). Juntas, AD e IL foram menos beneficiadas em relação às eleições do ano anterior do que o grande vencedor, o Chega, que cresceu quase 270 mil votos para um total de mais de 1,4 milhões de votos, 22,76%, e elegeu mais 10 deputados, tendo agora 60.


Para a esquerda, as eleições saldaram-se em tragédia. O PS teve um dos seus piores resultados de sempre, perdendo 370 mil votos e 20 deputados, ficando com 22,83% dos votos e 58 deputados. Tornou-se assim, e pela primeira vez, a terceira força política na AR. À esquerda do PS, as perdas também foram pesadas. O Bloco de Esquerda (BE) foi o outro grande derrotado. Perdeu mais de 150 mil votos, ficando com apenas 125 mil votos, 2%, e ficou reduzido a 1 deputada. A CDU (coligação PCP-PEV) continuou a sua constante perda de influência, perdendo 20 mil votos e 1 deputado, mantendo ainda um grupo parlamentar de 3 deputados e 2,9% dos votos. Apenas o Livre aumentou a sua votação em 50 mil votos, reforçando o seu grupo parlamentar em mais 2 deputados, obtendo 4% dos votos e 6 deputados. No total, a esquerda parlamentar obtém apenas um terço dos votos e 70 deputados.


A aritmética parlamentar não mudou radicalmente com estes resultados, pois a AD continua dependente do PS ou do Chega para aprovar leis na AR. Porém, do ponto de vista político, a situação alterou-se profundamente. Por um lado, o Chega alcançou o segundo lugar em número de deputados, consolidando-se como principal força de oposição com aparência de potencial alternativa ao poder. Por outro, a direita obteve uma inédita maioria de dois terços na AR, concedendo-lhe poder para alterar a Constituição sem aval do PS. Como parte de uma tendência mundial, a quebra de legitimidade dos partidos e instituições tradicionais aprofundou-se, bem como o crescimento da extrema-direita.


Como é possível esta derrota eleitoral da esquerda parlamentar, que acresce à do ano anterior, no país que na última década era apontado como exemplo para a esquerda reformista? E como é possível que, no país onde a extrema-direita apenas elegeu o seu primeiro deputado em 2019, esta força política seja já a segunda mais importante no parlamento?


O caminho até aqui: a troika e o seu programa de retrocesso social

Na sequência da crise financeira de 2008, as condições de financiamento da economia portuguesa degradaram-se ao longo de 2010 e 2011. O governo do PS da altura, que se demitiu após o chumbo parlamentar do seu próprio programa de austeridade, decidiu “dirigir à Comissão Europeia um pedido de assistência financeira por forma a garantir as condições de financiamento do nosso país, ao nosso sistema financeiro e à nossa economia”.


As palavras do então PM demissionário, José Sócrates, anunciavam um dos períodos mais traumáticos para o povo português desde o final da ditadura. Sob violento ataque dos especuladores financeiros, o país foi atirado pela “solidariedade” europeia para um programa draconiano de austeridade desenhado pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) – a troika. Assim, entre 2011 e 2014, Portugal tornou-se, juntamente com outros países europeus, num laboratório de experiências de políticas neoliberais que visavam atingir determinados resultados macroeconómicos independentemente das suas consequências sociais.


O programa da troika, negociado ainda pelo PS, foi alegremente implementado pelo governo PSD-CDS, chegado ao poder nas eleições legislativas antecipadas de 2011. O novo PM, Pedro Passos Coelho, afirmou até a intenção de “ir além da troika”, isto é, de implementar medidas de austeridade ainda mais severas para atingir os objetivos orçamentais mais rapidamente do que o estabelecido no programa. Essa ânsia de ser o “bom aluno” dos ditames de burocratas estrangeiros não eleitos ao serviço do grande capital financeiro, traduziu-se num “brutal aumento de impostos”, no corte de pensões e salários dos funcionários públicos, no ataque aos direitos laborais e aos direitos dos arrendatários, na subida dos custos de acesso a saúde e educação públicas e na privatização da participação pública em empresas estratégicas, entre outras medidas para benefício do grande capital.


Estas medidas tiveram consequências trágicas sobre a vida de milhões de portugueses. Entre 2011 e 2015, mais de meio milhão de portugueses abandonou o país em busca de melhores condições de vida, para fugir ao desemprego, que ultrapassou os 17%, e à precariedade laboral.


Durante estes anos, foram também lançadas as sementes da atual crise da habitação. A criação do programa de “vistos gold”, a alteração da lei das rendas para permitir a subida das rendas mais antigas, até aí congeladas, e a concessão de generosos benefícios fiscais a fundos de investimento imobiliário, bem como a promoção externa da “marca Portugal”, levaram a uma enorme pressão sobre o mercado imobiliário, conduzindo, mais tarde, à subida meteórica dos preços das casas e das rendas da habitação.


No final do programa de ajustamento, à custa das vidas de milhões de trabalhadores, o governo de direita alcançou os seus objetivos: a redução do défice, o regresso aos mercados financeiros e uma tímida recuperação da economia e, acima de tudo, melhores condições para a acumulação de capital em Portugal. Mas os anos da troika foram também anos de enormes mobilizações contra o governo, a troika e as suas políticas, com mais de um milhão de pessoas, isto é, um décimo de toda a população, em grandes manifestações e greves. Nas eleições legislativas de 2015, a coligação PSD-CDS conseguiu ficar em primeiro lugar com 36,86%, perdendo a maioria absoluta.


Corresponsável por quatro anos difíceis para a maioria dos portugueses, o PS teve dificuldades em afirmar-se como alternativa e ficou em segundo lugar com 32,3% e 86 deputados. O descontentamento da classe trabalhadora refletiu-se em 2015, em parte, na votação dos partidos à esquerda do PS: o BE passou de 8 para 19 deputados, enquanto a CDU obteve 17 deputados. Juntas, as duas forças reuniram quase um milhão de votos, 18,5%, e 36 deputados.


A nova composição da AR permitiu ao PS, liderado por António Costa, após este dar garantias de não atacar os interesses dos grandes grupos económicosaos banqueiros portugueses e aos dirigentes europeus, nomeadamente Angela Merkel, formar um governo minoritário com o apoio parlamentar de BE, PCP e PEV. O governo do PS assinou acordos escritos em separado com estes partidos, mas com o objetivo comum de “virar a página das políticas que traduziram a estratégia de empobrecimento seguida por PSD e CDS”, um arranjo parlamentar que ficou conhecido como “geringonça”.


A “geringonça”: um breve momento de conciliação social

Após o período da troika e da direita, de ataque explícito à classe trabalhadora, e de raiva e mobilização crescente contra o governo e o capitalismo, a burguesia passou a ver com agrado a possibilidade de ter maior estabilidade para os seus lucros através de um governo de conciliação de classes, que mantivesse intactas as contra-reformas estruturais do período da troika enquanto amenizasse a luta de classes.


Entre 2015 e 2019, o governo da “geringonça”, dependente no parlamento dos partidos à esquerda do PS, reverteu os cortes de pensões e salários e os aumentos de impostos exigidos pela troika e lealmente executados pelo governo de direita. Durante este período, o salário mínimo mensal aumentou de 485 para 600€ e outras importantes conquistas sociais foram alcançadas: o congelamento das propinas, a reversão e redução de taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde (SNS, saúde pública), a gratuidade dos manuais escolares e parcialmente das cheches, a redução dos preços dos passes de transportes públicos, a reposição das 35h de trabalho semanal na administração pública e a tarifa social na eletricidade.


Contudo, o governo da “geringonça” foi fiel ao compromisso com a burguesia. Não reverteu as alterações à lei laboral e à lei do arrendamento feitas por PSD e CDS, que se mantiveram até hoje, nem descongelou as carreiras da função pública. Quando foi necessário assegurar a estabilidade capitalista pela injeção de capital público em bancos privados falidos, o PS aliou-se ao PSD, deixando para trás os seus parceiros de “geringonça”.


Aproveitando-se do trauma da troika no povo português, o PS fez da consolidação das contas públicas o Santo Graal da sua política, levando a um progressivo subfinanciamento dos serviços públicos, numa política de austeridade encapotada. O investimento público foi ainda menor no período da “geringonça” que no período da troika, tendo atingido um mínimo de 1,6% do PIB em 2016. Foi neste período que começaram as enormes subidas de preços da habitação, da ordem de 10% por ano, que se mantêm até hoje, passada uma década. Foi também neste período que importantes lutas e greves, como dos enfermeiros, dos estivadores, dos motoristas de matérias perigosas e da Volkswagen Auto-Europa tiveram oposição ativa de dirigentes do BE, do PCP e da CGTP, a principal central sindical, controlada pelo PCP. A esquerda reformista mostrou que a sua principal utilidade na “geringonça” foi a de usar a sua autoridade para controlar a luta de classes, inclusivamente pela repressão de greves. Vários sindicatos independentes surgiram nesses anos, em colisão com a CGTP, que tem vindo desde então a perder uma importante capacidade de mobilização.


Após quatro anos de estabilidade política e económica e recuperação de rendimentos e direitos, nas eleições legislativas de 2019 o PS conseguiu um reforço da sua votação para 36,3%, embora insuficiente para a maioria absoluta. CDU e BE viram a sua votação reduzir-se para uma soma inferior a 16%, inclusive com perda de 5 deputados no caso da coligação PCP-PEV. Foi também nestas eleições que emergiu o partido Chega, elegendo André Ventura, o primeiro deputado de extrema-direita após a revolução de 1974/75.


No novo contexto político, o PS procurou manter o apoio dos seus antigos parceiros, agora enfraquecidos, exigindo a continuação do apoio parlamentar sem grandes contrapartidas. Durante a pandemia, BE e PCP mantiveram a sua atitude de conciliação, mesmo quando os direitos laborais foram atacados, como no regime de lay-off, que financiou os lucros das empresas com dinheiro público, enquanto os salários dos trabalhadores eram cortados. O PCP e o PEV ainda viabilizaram o Orçamento do Estado para 2021 pela abstenção. Quanto ao BE, apercebendo-se de que a atitude conciliatória estava a erodir a sua base de apoio, votou contra.


Por fim a rutura entre o PS e os partidos à sua esquerda chegou em 2021, com o chumbo do OE para o ano seguinte com os votos contra de todos os outros partidos. Perante este cenário, o Presidente da República (PR) dissolveu a AR e convocou novas eleições legislativas.


O declínio eleitoral da esquerda e o monstro da extrema-direita

Na campanha para as eleições antecipadas, realizadas já em 2022, o PS concentrou os seus ataques no BE e na CDU por terem chumbado o OE e apropriou-se totalmente dos sucessos da “geringonça”, enquanto acenava com o perigo do regresso da direita, desta vez junta à extrema-direita. Reconhecendo o facto do PSD ser incapaz de se apresentar como alternativa de governo, por ter um programa semelhante ao do PS, e os sentimentos de repulsa que o partido de André Ventura desperta no eleitorado do “centro”, António Costa e o PS concederam ao Chega um protagonismo político desproporcional ao seu peso eleitoral, procurando com isso mostrar-se como a única alternativa democrática ao crescimento da extrema-direita. O “abraço do urso” feito pelo PS aos partidos à sua esquerda resultou na conquista da maioria absoluta na AR com 120 deputados e 41,4% dos votos e na perda da maioria dos deputados dos partidos de esquerda: o BE ficou reduzido a 4,4% e 5 deputados e a CDU a 4,3% e 6 deputados (todos deputados do PCP, nenhum do PEV). À direita, com 7,2%, o Chega elegeu 12 deputados, começando a receber o voto de protesto que antes se dirigia para os partidos da esquerda radical. Também a direita ultraliberal da IL conseguiu uma significativa vitória, com 4,9% e 8 deputados. A direita tradicional obteve outra derrota: o PSD obteve apenas 27,7% e o CDS foi varrido da AR.


Apesar da maioria absoluta, o mandato começado a 2022 foi o mais difícil para António Costa. Como no resto do mundo, 2022 e 2023 foram marcados pela subida dos preços dos bens essenciais. Apesar da subida do preço da energia ter sido menos marcada em Portugal que noutros países, Costa foi extremamente conservador na resposta à inflação, argumentando durante cerca de um ano que os salários não deviam acompanhar a inflação devido ao perigo de uma espiral inflacionária. O desinvestimento prolongado nos serviços públicos, acompanhdo pelo crescimento dos setores privados de saúde e educação, tornou-se evidente nestes anos, com escolas e hospitais públicos impedidos de funcionar.


O ano de 2023 ficou marcado como um ano de lutas intensas, sobretudo de setores de trabalhadores da função pública, como professores, trabalhadores escolares, médicos, enfermeiros e funcionários judiciais. Foi o ano com maior número de greves desde 2013, pico da luta contra a troika e o programa da direita. Foi também o ano em que o prolongado aumento dos preços da habitação culminou no surgimento dum movimento massivo pela habitação, reunindo frequentemente 30 mil pessoas em manifestação. Submisso aos setores da burguesia em crescimento em Portugal – turismo, educação, saúde, imobiliário, seguros; agricultura, pesca e serviços dependentes de trabalho barato – e assoberbado pela obtenção da maioria absoluta, o governo de Costa e do PS respondeu sempre arrogantemente aos trabalhadores, sem ceder às suas justas reivindicações. Ao mesmo tempo, do ponto de vista institucional, 2022 e 2023 foram anos marcados por sucessivas demissões de personalidades do governo do PS por serem altamente contestadas ou por atos éticamente questionáveis. A classe dominante deixou de ver o PS como garante de estabilidade para os seus negócios e voltou a procurar alternativas à direita.


No final de 2023, o governo é inesperadamente abalado por um caso judicial obscuro envolvendo o PM. Apesar de não existir qualquer suspeita concreta sobre António Costa, este demite-se e o PR volta a convocar eleições antecipadas. Apesar de resultados relativamente bons do ponto de vista da economia burguesa, após um ano e meio de “casos e casinhos”, uma crise inflacionista e, possivelmente, afetado pelo caso judicial, o PS perde as eleições legislativas de março de 2024 para a AD (PSD-CDS), embora por pouco mais de 50 mil votos. O resultado eleitoral não trouxe maior estabilidade à classe dominante, e o fraco resultado de ambos os partidos tradicionais da burguesia (PSD e PS) revelou um regime político com legitimidade em queda, em consonância com a crise global do capitalismo. Por seu turno, o Chega recolheu mais de um milhão de votos, muitos deles vindos da abstenção, que diminuiu de 48% para 40% (quase 1 milhão de novos votantes), elegendo 50 deputados. Em sentido contrário, a esquerda acumula revezes: além da queda do PS, a CDU perde mais 2 deputados, embora o BE ainda consiga recuperar quase 40 mil votos, mas sem aumentar a representação parlamentar.


No último ano, o governo da AD de Luís Montenegro, dependente no parlamento do PS ou do Chega, foi introduzindo a sua política de direita, em continuidade com o PS, mas de forma mais agressiva para a classe trabalhadora. A sua primeira ação foi anular as parcas e insuficientes medidas do PS para tentar conter as rendas da habitação. Assumiu a subcontratação da saúde ao setor privado, entregando mesmo a gestão de alguns centros de saúde públicos, e uma política consistente de diminuição de impostos sobre os lucros das grandes empresas e sobre os rendimentos mais elevados. Tomou a narrativa da extrema-direita sobre crescimento da imigração e da insegurança, apesar de Portugal ser um dos países mais seguros do mundo, dificultando as condições de legalização dos imigrantes. Para implementar esta política de direita, preferiu sempre corresponsabilizar o PS, que viabilizou o OE para 2025, sob chantagem de não deixar a AD dependente do Chega. Com a marginalização da esquerda e com o consenso ao centro, o Chega foi-se afirmando como principal força de oposição. Ao mesmo tempo, como já referido, a AD aproveitou a boa situação das finanças públicas para fazer o que o PS se recusou a fazer, cedendo em alguns pontos a alguns dos setores da função pública que mais lutaram nos anos anteriores (professores, polícias, médicos) e baixando alguns impostos sobre camadas médias, ganhando o apoio de algumas camadas menos exploradas e amenizando a contestação social.


A partir daqui a história é a contada no início deste texto. Visto como responsável pela instabilidade política, o PS é engolido pelo monstro da extrema-direita que ajudou a criar. PCP e BE voltam a claudicar, incapazes de recuperar o voto de descontentamento que se refugiou no Chega e no seu discurso de simplicidade divisiva dos trabalhadores.


Porque falha eleitoralmente a esquerda parlamentar e cresce a extrema-direita?

No momento de maior fraqueza da esquerda na história democrática de Portugal, urge refletir sobre as causas da relutância da classe trabalhadora em aderir à mensagem da esquerda parlamentar. Porque é que tantos trabalhadores, na sua grande maioria com baixos salários, trabalhos precários, dificuldade em aceder a habitação ou forçados a emigrar votam contra os seus próprios interesses, em partidos que lhes prometem reduções de impostos que não pagam ou que atacam imigrantes que cá trabalham?


Estas questões são tão mais pertinentes quanto mais se constata que as políticas económicas adotadas pelas forças comprometidas com o capitalismo perpetuam ou agravam as desigualdades sociais e a pobreza de milhões de trabalhadores. Prometem a estabilidade para o futuro, mas fustigam os países com crises económicas e financeiras cíclicas, perspetivas de guerras e catástrofes ambientais, sempre pagas pelos trabalhadores e os mais desfavorecidos.


Parte do motivo do insucesso eleitoral do BE e da CDU reside no contexto desfavorável, tanto a nível nacional como internacional, para a esquerda anti-militarista. Os apelos da classe dominante ao crescimento da despesa em defesa, isto é, armamento e preparação de futuras guerras, têm sido intensos e têm surtido efeito na consciência da classe trabalhadora, ainda não sendo identificados como ataques aos seus direitos. É um dos motivos para o crescimento do Livre, esquerda pró-UE, pró-NATO e pró-militarização, e decrescimento do BE e da CDU, únicos partidos contra a contribuição para futuras guerras. O sentimento anti-militarista crescerá à medida que o aumento de investimento em defesa se traduzir mais concretamente em ataques às condições de vida da classe trabalhadora. Poderá crescer mais ainda se o futuro reservar um envolvimento mais direto nas guerras inter-imperialistas em preparação. Porém, devemos estar preparados para um contexto desfavorável nos próximos anos.


Outro motivo é a memória dos governos do PS e da “geringonça”. Apesar de BE e CDU terem feito campanhas com propostas de esquerda, procurando responder a problemas reais da classe trabalhadora, como a taxação dos ricos, controlo de rendas, investimento em serviços públicos, direitos adicionais para trabalhadores por turnos e aumentos de salários, estes partidos e os seus programas não são vistos como soluções reais pela maioria da classe trabalhadora. Ainda que o governo da “geringonça” de 2015-2019 seja o mais bem avaliado pelos portugueses (com uma nota 5/10), para muitos trabalhadores, sobretudo jovens, os últimos 8 anos de governo da esquerda (isto é, do PS, durante 6 anos com apoio de BE e CDU) são responsáveis pela crescente crise da habitação e pelo descalabro dos serviços públicos, e não alteraram o perfil de baixos salários da economia portuguesa, que leva tantos a continuar a emigrar. Com razão, não acreditam que os partidos que falharam no passado recente em controlar os preços da habitação e em reforçar os serviços públicos, o possam fazer agora. Para alguns setores da classe trabalhadora, os partidos de esquerda são aqueles que reprimiram as suas greves, mesmo nos anos da “geringonça”, abandonando-os e traindo-os. Esta memória prejudicou eleitoralmente tanto o PS como BE e CDU. Os próprios partidos de esquerda, BE e PCP em particular, não fazem o suficiente para corrigir essa memória dos governos de esquerda, falando sempre de forma positiva do governo da “geringonça”, sem assumir os seus erros, e por vezes procurando reeditar uma nova “geringonça”. Dessa forma, não se afirmam como alternativa de esquerda e apenas como potencial bengala do PS.


Nesse contexto, de falhanço da social-democracia em 8 anos de governo do PS, é mais fácil às camadas médias e a partes importantes da juventude e da classe trabalhadora acreditar que as soluções para os seus problemas estão em descidas de impostos e reformas (isto é, privatizações encapotadas) dos serviços públicos, do que em propostas social-democratas falhadas. Contudo, grande parte da classe trabalhadora não vota à direita por acreditar em soluções liberais. Para os mais revoltados com a situação, sejam da pequena-burguesia esmagada por impostos e pelo grande capital, sejam da classe trabalhadora empobrecida e abandonada pelo capitalismo, o partido que se apresenta como anti-sistema é mais atraente do que os partidos de esquerda que se apresentam como defensores da Constituição, do respeito pelas instituições burguesas, das “conquistas de Abril” e da suposta estabilidade da “geringonça” – que para muitos trabalhadores e jovens são sinónimos de um sistema podre que não defende os seus interesses.


O Chega tem usado cada palco que lhe é dado para promover a mentira, o ódio e a violência, defendendo “atirar a matar” sobre a população não-branca. Por isso mesmo, sabe-se que tem atraído ladrões, abusadores, pedófilos e outros criminosos, tendo mais dirigentes e militantes com processos na justiça que qualquer outro partido. Nos discursos das suas últimas vitórias eleitorais, o seu líder, André Ventura, tem afirmado consistentemente o objetivo de eliminar a esquerda em Portugal, para ficar com o caminho livre para espezinhar os trabalhadores e os mais oprimidos. Tem usado o aumento do número de imigrantes, consequência dos fluxos de mercado e da depredação imperialista, para procurar atacar os seus direitos, o que tem sido reforçado pelo discurso da própria AD. Assim, divide a classe trabalhadora, dirigindo a raiva contra o sistema para os trabalhadores mais oprimidos, e prepara melhores condições para a sobreexploração dos trabalhadores imigrantes, em claro serviço aos setores mais reacionários da burguesia e pequena-burguesia, dependentes desse trabalho barato. Assim sendo, parte da sua base social de apoio e do seu eleitorado é claramente reacionário, constituído por proprietários de terras e casas, empregadores e polícias, refletindo uma viragem à direita da burguesia, que precisa de uma postura mais agressiva e de maior sobreexploração para manter e aumentar as suas taxas de lucro, como é visível a nível internacional. Mas outra parte do seu eleitorado, insatisfeita com os resultados da governação de PS e PSD, e com a fraca prestação da esquerda quando teve responsabilidades, procura uma mudança no estado de coisas, sendo atraída por slogans como “contra 50 anos de corrupção”, apesar das muitas contradições que este encerra.


Perspetivas de luta

O novo governo da AD deverá continuar a introduzir uma agenda de direita com o apoio do PS, que deverá fazer o papel de “polícia bom”, aceitando o programa da AD em versão moderada, com receio de a AD implementar o seu programa mais radical em conjunto com o Chega. O programa de governo da AD inclui o aumento do orçamento militar, a intenção de alterar a lei da greve para a restringir, entregar parte dos descontos para a segurança social aos fundos de pensões privados e subcontratar serviços públicos de saúde e educação ao setor privado.


A maioria de dois terços da direita na AR abre a possibilidade de revisão constitucional. Inclusivamente, várias personalidades de direita mostram-se ávidas por usar essa possibilidade para atacar o direito à greve e para permitir despedimentos sem justa causa. A AD deverá recear perder apoio eleitoral ao centro se se deixar levar pela direita mais dura e, por isso, poderá vir a apoiar uma revisão constitucional à direita, mas mais moderada, possívelmente com o apoio do PS. O conluio entre AD e PS deverá continuar a favorecer o Chega no próximo período, pelo menos do ponto de visto eleitoral. Com menos folga orçamental que no último ano, com uma próxima crise económica ou um próximo escândalo, poderão ser Montenegero e a AD a sofrer duras perdas para o Chega. Ao mesmo tempo, com a normalização das propostas do Chega pela AD, um governo de coligação AD-Chega, hoje considerado instável, poderá ser uma possibilidade para a burguesia daqui a relativamente pouco tempo.


O crescimento do Chega é preocupante e tem levado a maior confiança de grupos violentos racistas e fascistas para realizar ações públicas, inclusivamente atacando militantes de esquerda. Mas o Chega ainda não mobiliza massas reacionárias para exercer violência sobre a esquerda, o movimento sindical e os trabalhadores mais vulneráveis e oprimidos. A esquerda continua a ser muito maior que a direita nas manifestações de rua. Inclusivamente, nos últimos 3 anos as comemorações populares do 25 de Abril, data de início da revolução de 1974/75, foram enormes, muito maiores do que em anos anteriores (anos da geringonça e da pandemia), trazendo inclusivamente cerca de um milhão de pessoas para a rua em 2024 e 2025. Embora sejam um misto de comemoração e protesto, as marchas de 25 de Abril têm um caráter claramente anti-fascista e de defesa dos direitos democráticos e sociais. No último ano, houve também importantes manifestações contra a violência policial, nomeadamente contra imigrantes e pessoas não-brancas. Assim, a classe trabalhadora mostra na prática que, apesar dos resultados eleitorais, o sonho de Ventrua de eliminar a esquerda na sociedade está longe de estar garantido.


Os próximos meses permanecem sob o clima eleitoral, com eleições autárquicas em outubro e presidenciais em janeiro de 2026. Neste momento, o terreno para essas eleições é desfavorável à esquerda, pois é a direita que parte com ímpeto da situação atual. Além disso, o foco do discurso público nas eleições torna o próximo período desfavorável às lutas sociais.


Mas há trabalho a fazer para quem quer lutar para transformar a sociedade. A marcha LGBTQI+ em Lisboa e no Porto a 7 de junho e a manifestação anti-racista a 10 de junho (dia de Portugal, em que fascistas e racistas se manifestam) tiveram uma adesão importante. A 28 de junho, uma nova manifestação pelo direito à Habitação deverá ser um importante momento de mobilização. Do nosso ponto de vista, consideramos que tem havido uma falta de confiança da classe trabalhadora na capacidade do movimento pela habitação conseguir obter verdadeiras vitórias que alterem a situação trágica da habitação em Portugal. Consideramos também que os sindicatos, nomeadamente da CGTP, não se têm envolvido o suficiente nessa luta. A ausência dos sindicatos, dessa e de outras lutas, favorece a perceção de que os sindicatos só se importam com setores relativamente privilegiados, sem benefício para a maioria da classe trabalhadora. Dado que o acesso à habitação é um dos principais fatores a determinar a capacidade de retenção de profissionais nos serviços públicos, e sendo uma reivindicação importante dos sindicatos desses setores, consideramos que seria importante o movimento sindical envolver-se seriamente na causa. A força da greve, que alguns setores ainda têm (como a ferrovia, onde 100% dos trabalhadores da CP aderiu à greve dias antes das últimas eleições) e que falta ao movimento pela habitação, devia ser usada até que verdadeiros controlos de rendas e preços sejam implementados, através de expropriação e propriedade pública das casas não habitadas e dos fundos imobiliários.


A questão da apresentação de uma alternativa política de esquerda, que mostre um caminho para transformar a sociedade e mobilize e dê confiança à classe trabalhadora para se organizar permanece crucial. Em 2015, a esquerda reformista mas combativa conseguiu reunir um milhão de eleitores revoltados com o ataque a que foram sujeitos pelos lacaios burocratas da burguesia. Porém, nesse momento de grande crescimento eleitoral das forças progressistas e de agitação social, a esquerda decidiu conformar-se com a reversão parcial do programa da troika. É um facto que conseguiu melhorias substanciais para a grande parte da classe trabalhadora, mas não usou a sua posição no parlamento para mobilizar a classe trabalhadora e pressionar o governo do PS, exigindo o total desmantelamento do programa neoliberal da direita. Em vez disso, conformou-se com pequenas vitórias que facilmente foram ostentadas pelo PS como suas, e foi corresponsabilizada pelos ataques do PS à classe trabalhadora.


Assim, para não repetir os erros do passado, a esquerda deve basear a sua ação na força e confiança da classe trabalhadora, e não em perspetivas de acordos parlamentares. Não deve ter receio de apontar o dedo aos responsáveis pelos problemas dos trabalhadores e dos oprimidos: os milionários, os rentistas, os que prosperam com as guerras, a destruição ambiental, a precariedade do trabalho e a exploração dos mais vulneráveis, como os imigrantes e os trabalhadores pobres e não sindicalizados. Acima de tudo, o sistema capitalista, onde o lucro é necessário e se sobrepõe a tudo o resto. Deve afirmar um programa que responda concretamente às aspirações dos trabalhadores e dos mais oprimidos, com soluções socialistas que ponham em causa a propriedade privada e a lógica do lucro e do mercado, dando-lhes a confiança de que a sua organização e luta pode mudar o mundo se tiverem um programa consistente que preveja os movimentos da burguesia e tome medidas para os prevenir, levando ao derrube do capitalismo pela tomada de poder pela classe trabalhadora e ao início da transição para uma sociedade sem classes nem opressões. Deve ser emotiva nos seus discursos, pois são as emoções que movem multidões, e os nossos inimigos políticos não têm pejo em usar as emoções negativas para dividir a classe trabalhadora. Mas se a extrema-direita faz uso da mentira e do ódio contra os mais fracos, devemos responder de forma verdadeira mas igualmente violenta à extrema-direita, denunciando aqueles que verdadeiramente servem.


Ainda que a tarefa seja árdua e o momento político adverso, a esquerda não pode esmorecer na luta. Nós, marxistas, encontramos um sentido para o trabalho revolucionário na consciência que temos das relações de exploração e opressão na sociedade burguesa e na convicção de que é possível uma alternativa ao atual sistema capitalista, uma nova sociedade em que a produção e distribuição de recursos e as inovações sejam planeadas democraticamente de forma a satisfazer as necessidades de todos, evitando guerras e a destruição ambiental.

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