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Abordagem Marxista à Luta pela Libertação da Palestina

  • Eddie McCabe & Donal Devlin
  • Aug 3
  • 39 min read
Mural pintada no mura na Cisjordânia
Mural pintada no mura na Cisjordânia

(Artigo publicado originalmente em inglês pelo Projeto para uma Internacional Marxista Revolucionária a 9 de Junho de 2025 e publicado )


O socialista e escritor palestiniano Ghassan Kanafani descreveu a luta palestiniana como “uma causa das massas exploradas e oprimidas da nossa era.” Palavras certeiras. O horror incessante em Gaza expôs de forma clara a depravação do capitalismo nos dias de hoje.


O facto de um verdadeiro holocausto poder ocorrer no século XXI, com massacres transmitidos em direto quase diariamente, revelou toda a hipocrisia, desfaçatez e desumanidade do sistema e dos seus principais representantes, particularmente entre a classe dominante imperialista ocidental. O mundo nunca mais será o mesmo depois deste genocídio.


Pessoas em todo o mundo foram despertadas para a acção política. Dezenas de milhões mobilizaram-se em solidariedade com a Palestina. A selvajaria infligida a uma população indefesa, entalada numa pequena faixa de terra bloqueada, foi enfrentada com um movimento de protesto global sem precedentes desde a Guerra do Vietname. A ocupação da Palestina é uma das linhas de fractura do capitalismo global, servindo para radicalizar e educar muitos sobre quem está, em última análise, do lado da liberdade e da justiça no nosso mundo — e quem não está.


Repressão de um movimento

Durante todo este tempo, tem havido um fluxo ininterrupto de armas para o Estado de Israel, provenientes dos Estados Unidos e da Europa. As multinacionais, os gigantes monopólios de renome mundial, estão diretamente cúmplices no genocídio. A Google e a Amazon competem entre si para fornecer às forças armadas israelitas ferramentas de inteligência artificial e serviços em nuvem, que têm sido utilizadas com efeitos letais sobre a população civil de Gaza, incluindo crianças.


Na Cisjordânia ocupada, onde os palestinianos enfrentam uma nova vaga de deslocamentos em massa — a maior desde o início da ocupação em 1967 — empresas como a Hewlett Packard e a Microsoft forneceram aos ocupantes a tecnologia necessária para realizar vigilância em massa sobre a população. O Facebook deu espaço a mais de 100 anúncios promovendo colonatos e a actividade de colonos da extrema-direita.¹


Os média capitalistas — da BBC, RTÉ, The Irish Times, The New York Times, CNN, entre muitos outros — agem em grande medida para subnoticiar, justificar, minimizar ou contextualizar as acções do Estado de Israel. Sanitizam a realidade do genocídio ao recusarem sequer usar essa palavra para descrever esta horrível campanha de terror de Estado, tal como evitam termos como “massacres”, “atrocidades” ou “crimes de guerra”.


Promovem uma narrativa que pressupõe a existência de dois lados iguais neste “conflito”. Ignoram deliberadamente a assimetria gritante que caracteriza a relação entre o Estado israelita — altamente militarizado, com tecnologia de ponta e armas nucleares — e um povo desapossado, empobrecido e traumatizado: os palestinianos.


O apoio imperialista à agenda israelita tem levado à repressão de direitos democráticos básicos em muitas das chamadas democracias ocidentais. Nos EUA, o recente e cruel rapto por agentes do ICE de Mahmoud Khalil — um refugiado palestiniano nascido na Síria, cuja esposa esperava um bebé em Abril — é um exemplo flagrante. Khalil foi um dos principais organizadores do acampamento de solidariedade com a Palestina na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, em 2024.


A sua detenção, da qual Donald Trump se gabou publicamente, teve como objectivo criar um efeito dissuasor no movimento de solidariedade com a Palestina. Seguiram-se outras detenções e ameaças de deportação, como as do académico de Georgetown Badar Khan Suri e do estudante da Universidade de Cornell Momodou Taal.


Tudo isto acontece na sequência da brutal repressão dos acampamentos no ano passado, com milhares de estudantes expulsos ou suspensos dos seus cursos. A escala da censura pró-sionista nos EUA ficou ilustrada com o facto de o documentário premiado No Other Land não ter conseguido distribuidor no país. Um presidente de câmara na Florida chegou ao ponto de ameaçar encerrar um cinema em Miami Beach por o exibir.²


Na Alemanha, o segundo maior exportador de armas para Israel, o Estado tem levado a cabo um nível sem precedentes de repressão de protestos solidários com a Palestina, particularmente contra migrantes, muçulmanos e pessoas racializadas — detendo activistas, proibindo manifestações, invadindo e encerrando reuniões públicas à força. Foi o que aconteceu durante um encontro com Francesca Albanese, a Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinianos Ocupados, uma crítica vocal do genocídio.


Dois cidadãos irlandeses estão entre quatro estrangeiros que, à data desta escrita, enfrentam deportação devido à sua actividade de solidariedade com a Palestina. Em Berlim, manifestantes chegaram a ser detidos por entoarem palavras de ordem e falarem árabe num protesto. A lei de cidadania da Alemanha foi alterada para obrigar novos cidadãos a afirmar o “direito à existência” de Israel.


Entretanto, há uma corrida por parte de vários governos para adoptarem a definição de anti-semitismo da IHRA (Aliança Internacional para a Memória do Holocausto), que, na prática, equipara esta forma de preconceito vil a qualquer crítica ao Estado sionista. Isto inclui o Estado irlandês, cujo governo no Sul se apressa a demonstrar as suas credenciais pró-sionistas perante a administração Trump.


Do mesmo modo, o governo abandonou o seu compromisso de apoiar o Projeto de Lei dos Territórios Ocupados, uma medida elementar que proibiria bens e serviços oriundos da Cisjordânia ocupada, de Jerusalém Oriental e das Colinas de Golã. A detenção de mulheres do grupo Mothers Against Genocide (algumas das quais foram indignamente sujeitas a revistas com nudez forçada), que protestavam pacificamente frente ao Dáil no final de Março, serve de alerta de que o Estado irlandês está disposto a seguir o exemplo de outros estados repressivos — se achar que o pode fazer impunemente.


Colonialismo de ocupação

O apoio imperialista ocidental à existência de um Estado sionista cliente no Médio Oriente tem uma longa história. Já em 1839, o político conservador britânico Lord Shaftesbury escreveu no The Times sobre a necessidade de uma pátria para os judeus na Palestina, referindo-se a uma “terra sem povo – para um povo sem terra”. Esta frase perpetuava o mito de que a Palestina era uma terra deserta e, portanto, facilmente colonizável por migração judaica.


Uma variante desta expressão – “uma terra sem povo para um povo sem terra” – tornou-se o lema do movimento sionista, nomeadamente no panfleto de Theodor Herzl de 1896, O Estado Judeu. Esta ideia ignorava conscientemente a existência da população árabe palestiniana. Tornou-se a justificação para a limpeza étnica dos palestinianos da sua terra, com o objectivo de construir um Estado de maioria judaica – uma forma peculiar de colonialismo de povoamento, única por não ter por detrás um Estado-nação preexistente a implementá-lo diretamente.


O colonialismo de povoamento era já uma prática bem estabelecida por parte das potências imperialistas. Foi crucial para o desenvolvimento capitalista global e envolveu crimes genocidas contra populações indígenas em diversas partes do mundo, incluindo as Américas, África, Austrália e Nova Zelândia.


Hoje, o Estado sionista continua a ser de natureza colonialista e permanece comprometido com a construção de um Estado assente no conceito de “mais terra, menos árabes”. Isto significa o contínuo deslocamento da população palestiniana da sua terra e o estabelecimento de judeus nesses territórios.


Esta tem sido a política de sucessivos governos israelitas desde a fundação do Estado de Israel em 1948. Tal política é combinada com uma hierarquia racial codificada, onde, por exemplo, os judeus, independentemente do local onde nasçam, têm direito automático à cidadania israelita. Em contraste, os refugiados palestinianos expulsos em 1948 e os seus descendentes são impedidos de regressar à sua terra natal histórica. Toda esta dinâmica assenta na desapropriação, conduzindo, em última instância, ao genocídio da população árabe indígena da Palestina.


Hoje, este processo de colonialismo de povoamento é particularmente evidente na Cisjordânia ocupada, em Jerusalém Oriental e nas Colinas de Golã. O número de colonos nestas regiões ultrapassa os 700.000 e está em rápida expansão.


No entanto, um processo semelhante ocorre dentro das fronteiras do Estado de Israel pré-1967, a chamada “Linha Verde”. Há uma tentativa contínua de “judaizar” a Galileia, no norte, e o deserto do Naqab (Negev), no sul, onde os árabes palestinianos constituem a maioria. Neste último caso, as aldeias onde residem beduínos palestinianos nem sequer são reconhecidas nos mapas oficiais, o que facilita a sua destruição sistemática.


O actual governo israelita tem planos para conceder benefícios económicos a judeus que se mudem para essas zonas, semelhantes aos subsídios habitacionais atribuídos a colonos nos Territórios Ocupados (ocupados desde 1967).³


Além disso, esta política de apartheid é promovida a nível global. O podcast The Take, da Al Jazeera, revelou recentemente que vastas parcelas de imóveis, em ambos os lados da Linha Verde, são vendidas nos Estados Unidos com a condição de que apenas pessoas judias possam adquiri-las.⁴ Isto está também na base do programa Birthright Israel (“Direito de Nascimento de Israel”), que oferece viagens gratuitas a jovens judeus norte-americanos e os encoraja a viver em Israel. Tal como o nome indica, trata-se de uma promoção descarada da supremacia judaica.


Sionismo cristão e imperialismo

Lord Shaftesbury foi um representante do que mais tarde viria a ser conhecido como sionismo cristão, que hoje tem uma influência significativa dentro do Partido Republicano nos Estados Unidos, defendendo que a criação de um Estado judeu é o cumprimento de uma “profecia bíblica”. Como apontou o escritor de esquerda Andreas Malm, este sionismo da classe dominante britânica era:


“… uma fantasia totalmente gentia, cristã, branca e anglo-saxónica, na qual os judeus reais que viviam no Médio Oriente ou noutros locais não desempenhavam qualquer papel activo.”⁵


Só um século mais tarde, com a ascensão dos nazis ao poder e o subsequente Holocausto, é que o apoio à criação de um Estado judeu ganhou aceitação mais alargada entre o povo judeu. Antes disso, a perspetiva de se estabelecerem na Palestina tinha pouca atracção. Dos quatro milhões de judeus que abandonaram a Europa Oriental e Central devido à perseguição e à pobreza entre 1880 e 1929, apenas 120.000 foram para a Palestina, muitos dos quais não permaneceram por muito tempo.⁶


Apesar de se revestir de misticismo religioso, o apoio de Shaftesbury à criação de um Estado judeu nesta região reflectia os interesses materiais do imperialismo britânico em explorar o Médio Oriente. Um Estado cliente sob a forma de um território judeu poderia ser um aliado leal na submissão da região à pilhagem económica.


Na década de 1840, o objetivo era destruir o regime de Muhammed Ali do Egipto e conquistar a sua indústria do algodão – um potencial rival económico. Isto marcou essencialmente o início de um padrão que persiste até hoje: o apoio imperialista a um Estado sionista como instrumento de dominação estratégica e obtenção de lucros.


Durante a Primeira Guerra Mundial e o declínio do Império Otomano, os imperialismos britânico e francês procuraram tomar o controlo do restante Médio Oriente (a Grã-Bretanha já ocupava o Egipto desde 1882) para explorar a sua riqueza, nomeadamente as reservas de petróleo, através de um infame tratado secreto, o Acordo Sykes-Picot, no qual dividiram os despojos do império.


Para a Grã-Bretanha, a Palestina era uma peça central neste plano, devido à sua proximidade com o Canal de Suez, no Egipto – uma rota comercial vital para o Império Britânico. O porto de Haifa, na Palestina, tornou-se também um ponto crucial para o refinamento do petróleo destinado à exportação.


Em Novembro de 1917, foi emitida a “Declaração Balfour”, que prometia ao movimento sionista uma “pátria judaica” na Palestina. Cuidaram em não utilizar a palavra “Estado”, para evitar antagonizar a opinião pública árabe.


No mês seguinte, as tropas britânicas ocuparam Jerusalém e rapidamente estabeleceram o que chamaram, eufemisticamente, de “Mandato” na Palestina – ou seja, uma ocupação colonial – incentivando uma colonização sionista mais aprofundada à custa dos palestinianos. Implementaram a política de “dividir para reinar” que tinham aperfeiçoado na Irlanda e noutros locais. Não por acaso, Ronald Storrs, então governador militar de Jerusalém, descreveu o seu projecto na Palestina como a criação de “uma pequena e leal Ulster judaica num mar de potencial arabismo hostil.”⁷


Israel – um trunfo estratégico

Joe Biden, enquanto senador em 1986, resumiu bem a centralidade do apoio dos EUA ao Estado israelita:


“Israel é o melhor investimento de 3 mil milhões de dólares que fazemos. Se não existisse um Israel, os Estados Unidos da América teriam de inventar um Israel para proteger os nossos interesses na região. Os Estados Unidos teriam de sair e inventar um Israel.”⁸


O controlo das reservas de petróleo do Médio Oriente tem sido de importância crítica para o imperialismo norte-americano desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Isto não se deve, como frequentemente se pensa, ao facto de os EUA precisarem de petróleo como fonte de energia doméstica; o país possui abundantes reservas internas e importa petróleo do Canadá e da América Latina. O que está em causa é o papel decisivo que o petróleo desempenha na produção de mercadorias em geral, e a importância estratégica de controlar o seu fornecimento através da manutenção de regimes submissos nos países produtores.


O historiador económico marxista Adam Hanieh apontou:


“… a investigação académica trata o petróleo apenas como uma fonte de energia ou combustível de transporte – ignorando completamente o outro aspecto do seu surgimento, a meio do século XX, como combustível fóssil dominante: o nascimento de um mundo composto por plásticos e outros produtos sintéticos derivados do petróleo. A partir da década de 1950, uma vasta gama de substâncias de origem natural – madeira, vidro, papel, borracha natural, fertilizantes naturais, sabões, algodão, lã e metais – foi sistematicamente substituída por plásticos, fibras sintéticas, detergentes e outros químicos à base de petróleo. Esta revolução ‘petroquímica’ permitiu a sintetização daquilo que até então só se encontrava e apropriava no domínio da natureza; a própria substância da vida quotidiana foi transformada, como por alquimia, em vários derivados do petróleo. Aqui o petróleo não é uma fonte de energia, mas sim matéria-prima, o literal material bruto da produção de mercadorias.”⁹


A isto somou-se a compra e venda de petróleo em dólares, o que ficou conhecido como “petrodólares”, e que ajudou a cimentar o dólar americano (“greenback”) como moeda de reserva mundial.¹⁰


Isto significa que a esmagadora maioria do comércio mundial, importações e exportações, ocorre em dólares, e grande parte da riqueza acumulada pelos Estados do Golfo, além de enriquecer pequenas elites, foi “reciclada” de volta para os mercados financeiros do capitalismo global. Este tem sido um fator importante na manutenção da hegemonia económica do imperialismo norte-americano, apesar da ameaça real representada pelo seu rival, o imperialismo chinês.


O pitbull do imperialismo

A Nakba, ou ‘catástrofe’ – a limpeza étnica de 750.000 palestinianos da sua terra natal – deu origem ao Estado de Israel em 1948. A Nakba foi apoiada pelos EUA e por outras potências imperialistas ocidentais, bem como, vergonhosamente, pela União Soviética. Um editorial do jornal israelita Haaretz, em 1951, resumiu como o novo Estado via a sua relação com o imperialismo dos EUA e do Reino Unido:


“Israel é uma forma bastante conveniente para as potências ocidentais manterem o equilíbrio de forças políticas no Médio Oriente. Segundo esta suposição, a Israel foi atribuído o papel de uma espécie de cão de guarda. Não há receio de que aplique uma política agressiva contra os Estados árabes se isso for claramente contra a vontade da América e da Grã-Bretanha. Mas suponhamos que as potências ocidentais, por uma razão ou outra, preferem fechar os olhos. Nesse caso, pode confiar-se em Israel para castigar devidamente um ou vários dos seus Estados vizinhos cujo comportamento para com o Ocidente tenha ultrapassado os limites permitidos.”¹¹


Após a Guerra dos Seis Dias, em Junho de 1967, o prestígio de Israel aumentou consideravelmente entre a classe dominante norte-americana. O país foi visto como tendo infligido um golpe devastador às forças do nacionalismo árabe, depois da derrota de estados como o Egipto.


Gamal Abdel Nasser foi o principal rosto desse movimento, que procurava unificar a nação árabe e tomou medidas radicais, como a nacionalização do Canal do Suez e de outras indústrias, embora nunca tenha rompido com o capitalismo.


Nasser foi também uma figura chave do movimento dos não-alinhados, que se opunha ao imperialismo ocidental no Médio Oriente e no Sul Global em geral, procurando equilibrar-se entre a União Soviética e os Estados Unidos durante a Guerra Fria. No contexto da derrota dos EUA no Vietname, a vitória de Israel sobre o que era visto como um “insurgente do Terceiro Mundo” numa região crucial para os interesses norte-americanos foi significativa.¹²


Foi depois de 1967 que a ajuda militar e civil dos EUA a Israel aumentou substancialmente (hoje recebe diretamente 3,8 mil milhões de dólares por ano, principalmente em ajuda militar, e muito mais desde Outubro de 2023). Até ao final dos anos 60, grande parte do armamento israelita provinha do imperialismo francês, que também o ajudou a desenvolver o seu programa de armas nucleares.


Assim, os laços do Estado sionista com o imperialismo norte-americano são profundos, embora este último seja, indiscutivelmente, a força dominante na relação – ao contrário da visão generalizada de que é o Estado israelita que dita os termos através de poderosos grupos de lobby pró-Israel, como o AIPAC (American Israel Public Affairs Committee).


Embora o ‘lobby israelita’ tenha, sem dúvida, uma influência significativa na política dos EUA, várias administrações norte-americanas conseguiram impor-se a Israel quando lhes convinha. Mais recentemente, Donald Trump foi capaz de pressionar Netanyahu a aceitar um cessar-fogo, ainda que temporariamente.


Israel é visto como “um trunfo estratégico” cuja natureza altamente militarizada permite aos Estados Unidos dominar mais facilmente o Médio Oriente. Trata-se de um Estado muito mais estável, baseado numa sociedade relativamente coesa, em comparação com os regimes árabes ou com o antigo aliado dos EUA, o Xá do Irão, derrubado na revolução de 1979.


A economia de Israel está também profundamente entrelaçada com a economia capitalista global, particularmente nas indústrias de alta tecnologia. Mantém laços estreitos com grandes empresas tecnológicas mundiais. O livro The Palestine Laboratory, do autor Antony Loewenstein, descreve até que ponto o complexo militar-industrial israelita desempenha um papel crucial no desenvolvimento de tecnologia usada para aperfeiçoar a repressão estatal a nível global.


O apoio de Israel aos interesses do imperialismo ocidental vai muito além do Médio Oriente. Tem um passado sombrio de apoio a ditaduras brutais.


Na América Latina, apoiou gangues fascistas da morte na América Central e armou e financiou várias ditaduras militares nas décadas de 1970 e 1980. Forneceu serviços de vigilância ao regime de Augusto Pinochet no Chile, bem como armamento para controlo de multidões.


No seu último ano no poder, antes de ser derrubado pelo movimento guerrilheiro de esquerda Sandinista, em 1979, o ditador da Nicarágua, Anastasio Somoza Debayle, assassinou 50.000 dos seus cidadãos; o Estado israelita forneceu 98% das suas armas.¹³ Israel também deu apoio militar à África do Sul do apartheid; treino e armas a Mobutu no Zaire; e desenvolveu laços estreitos com vários regimes autoritários no Sudeste Asiático.


A perfídia das classes dominantes árabes

O Estado de Israel e os seus patronos imperialistas são os inimigos mais evidentes da libertação palestiniana. No entanto, a luta pela liberdade na Palestina enfrenta também outros opositores: os regimes capitalistas árabes do Médio Oriente e Norte de África. Todos estes regimes ditatoriais estão comprometidos com a manutenção do poder de pequenas elites e são, em última análise, subordinados ao imperialismo dos EUA.


Fazer um relato completo da sua odiosa história de opressão dos refugiados palestinianos dentro das suas fronteiras exigiria mais espaço do que temos aqui, mas alguns exemplos incluem os palestinianos no Líbano, que são privados da cidadania e impedidos de trabalhar em pelo menos 39 profissões. Em março de 1991, cerca de 287.000 palestinianos foram forçados a fugir do Kuwait devido à crescente repressão. Nos últimos 20 anos, os regimes egípcios atuaram como co-zeladores do cerco a Gaza. Durante a guerra civil na Síria, o agora deposto regime de Bashar al-Assad impôs um cerco brutal ao campo de refugiados palestinianos de Yarmouk.


As classes dominantes destes estados há muito que olham com receio para os sentimentos radicais entre a classe trabalhadora e os pobres palestinianos – e com razão. Em 1953 e 1954, 3.000 palestinianos que trabalhavam para a Aramco (antiga Arabian-American Oil Company) no Qatar, Kuwait e Arábia Saudita desempenharam um papel importante numa vaga de greves que exigiam o reconhecimento de sindicatos e melhores salários e condições.¹⁴


Isto num estado onde não existia um movimento operário independente e cuja classe dominante estava determinada a mantê-lo assim.


Em 1970, um movimento revolucionário de massas dos palestinianos na Jordânia ameaçou derrubar a monarquia Hachemita do Rei Hussein. Estima-se que 10.000 pessoas tenham sido massacradas quando esta revolta foi esmagada com o auxílio do imperialismo dos EUA, sendo que o futuro ditador do Paquistão, Muhammad Zia-ul-Haq, desempenhou um papel-chave.


As classes dominantes árabes encaram, com razão, uma luta revolucionária dos palestinianos comuns como algo potencialmente contagioso, capaz de inspirar os trabalhadores e os oprimidos dos seus próprios estados a erguerem-se e pôr fim ao seu domínio.


Regimes como o da família Assad, na Síria, procuraram dominar a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e usá-la como joguete político para reforçar o seu prestígio e apoio. Esse mesmo regime travou uma guerra brutal contra a OLP no Líbano nos anos 1980, no que ficou conhecido como a “Guerra dos Campos” (referindo-se aos campos de refugiados). Através da milícia Amal, sua aliada xiita no Líbano, milhares de palestinianos foram mortos na tentativa de derrotar facções da OLP que não estavam subjugadas aos seus interesses.


Hoje, os Estados árabes abandonaram grande parte do seu apoio retórico – por mais hipócrita e vazio que fosse – à causa palestiniana e à oposição ao regime israelita.


Nos últimos anos, vários deles procuraram, sob pressão dos EUA, firmar “acordos de normalização” com o regime israelita – acordos que implicam o reconhecimento formal do Estado de Israel por parte dos Estados árabes, estabelecendo laços diplomáticos e comerciais. Tanto a administração Trump como a de Biden esperavam que isso integrasse Israel na região e enterrasse por completo as aspirações palestinianas, o que, por sua vez, ajudaria a isolar ainda mais os regimes iraniano e sírio.


Antes do ataque horrível do Hamas a 7 de Outubro, os Estados árabes, Israel e o imperialismo dos EUA acreditavam ter posto definitivamente a questão palestiniana de lado. No entanto, o horror indescritível do genocídio em Gaza voltou a colocá-la no centro das atenções políticas da região, sobretudo entre a classe trabalhadora, os pobres e, significativamente, a juventude.


Isto tornou o processo de normalização das relações com Israel muito mais difícil. Isso foi bem expresso numa conversa entre o príncipe herdeiro Mohammed da Arábia Saudita e o então secretário de Estado norte-americano Antony Blinken, quando lhe disse confidencialmente:


“Setenta por cento da minha população é mais jovem do que eu. Para a maioria deles, a questão palestiniana nunca teve grande relevância. E agora estão a ser confrontados com ela pela primeira vez através deste conflito. É um grande problema. Preocupo-me pessoalmente com a questão palestiniana? Não, mas o meu povo preocupa-se, por isso tenho de garantir que isto tenha algum significado.”


E acrescentou:


“Metade dos meus conselheiros dizem que este acordo não vale o risco… Posso acabar morto por causa deste acordo.”⁵


O Médio Oriente e o Norte de África são das regiões mais desiguais do mundo. Entre 2019 e 2022, estima-se que 16 milhões de pessoas tenham sido empurradas para a pobreza, enquanto no mesmo período os super-ricos viram a sua riqueza líquida aumentar em 60%.¹⁶


O empobrecimento em países como o Egipto agravou-se na década seguinte ao esmagamento das revoltas revolucionárias da chamada “Primavera Árabe”.


As classes dominantes árabes, especialmente nos Estados do Golfo, compram grandes quantidades de armamento ao imperialismo ocidental com as suas vastas reservas de petrodólares. Entre 2015 e 2019, os seis Estados do Golfo compraram mais de um quinto do armamento vendido globalmente, com a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos (EAU) e o Qatar a ocuparem, respetivamente, o primeiro, oitavo e décimo lugares no ranking de maiores importadores de armas do mundo.¹⁷


A repressão dos direitos democráticos por parte destes regimes altamente militarizados está intimamente ligada ao empobrecimento das massas pelas classes capitalistas. No caso do Egipto, a ditadura militar de El-Sisi detém e controla grande parte da economia.


Os regimes do Golfo são governados por famílias monárquicas que se enriqueceram enormemente com o dinheiro do petróleo e a sua posse de grandes conglomerados económicos construídos com base na exploração extrema da mão de obra migrante do Sul da Ásia, que também não tem direitos de cidadania.


A oposição feroz ao Estado de Israel e à sua ocupação da Palestina por parte das massas trabalhadoras do Médio Oriente e do Norte de África está ligada ao facto de este se ter tornado um símbolo evidente da exploração e dominação imperialista sobre a região.


Está também ligada ao ódio às classes dominantes que reprimem brutalmente estas sociedades e acumulam fortunas colossais à custa da classe trabalhadora e dos pobres.


Os capitalistas palestinianos – uma classe comprometida

Também entre os palestinianos existe uma divisão de classe importante. Os capitalistas palestinianos e os que estão politicamente ligados a eles têm demonstrado repetidamente que os seus interesses são divergentes dos das massas palestinianas.


Embora possam apoiar a exigência de um Estado palestiniano independente com base nas fronteiras de junho de 1967, na melhor das hipóteses falta-lhes vontade para travar a luta necessária contra o Estado israelita assassino e os regimes árabes corruptos; na pior, actuam para normalizar a ocupação e colaboram na repressão da luta contra ela.


Tal como outros sectores da sociedade palestiniana, a classe capitalista palestiniana foi forçada a sair da maior parte da Palestina histórica após a Nakba. A partir desse período, passou rapidamente a estar ligada a outros regimes árabes. Grande parte da classe dominante da Jordânia é de origem palestiniana. Esta teve um papel-chave no desenvolvimento do Arab Bank, sediado em Amã e uma instituição financeira de relevo no Médio Oriente; o mesmo se aplica à companhia aérea nacional libanesa, Middle East Airlines; à enorme empresa de construção e comércio Contracting and Trading Company (CAT); e à Arabia Insurance Company, também no Líbano. Além disso, fez investimentos em vários Estados do Golfo.¹⁸


Dentro da Autoridade Palestiniana (AP), o regime colaboracionista dominado pela Fatah – a maior facção da OLP – uma classe capitalista ligada a Mahmoud Abbas e ao seu círculo próximo tornou-se dominante. A AP detém nominalmente a administração política e militar sobre os principais centros populacionais da Cisjordânia ocupada e, na prática, actua como força subcontratada por Israel para fazer cumprir a ocupação.


Em Dezembro, iniciou uma repressão severa contra as forças de resistência palestinianas em Jenin, seguida da proibição da transmissão da Al Jazeera, depois de esta ter noticiado sobre o assunto. Esta repressão acabou por abrir caminho para que Israel lançasse a “Operação Muro de Ferro”, que resultou em pelo menos 40 mil palestinianos deslocados dos campos de refugiados no norte da Cisjordânia.


Existe um fosso gritante entre as condições desta elite palestiniana rica na Cisjordânia e a maioria dos trabalhadores, camponeses e pobres. Nos últimos 17 anos, ocorreu um boom imobiliário significativo alimentado pela especulação na Área A, que cobre 17% da Cisjordânia. Como resultado, essa zona tornou-se incomportável para a maioria dos palestinianos, que são forçados a viver em centros populacionais sobrelotados. Em 2008:


“… o preço da terra em partes de Ramallah já atingia os 4.000 dólares por metro quadrado, um terço do preço dos imóveis de topo em Nova Iorque e Paris, e apenas ligeiramente abaixo de Berlim, Bruxelas e Madrid.”¹⁹


Neste boom da construção, os promotores imobiliários palestinianos actuaram no sentido de normalizar economicamente a ocupação. Por exemplo, a construção da nova cidade de Rawabi envolveu a contratação de dez empresas israelitas como fornecedoras. Esta ligação aos ocupantes israelitas também se traduziu, em 2014, na seguinte situação:


“Segundo um estudo, o capital palestiniano estava a ser investido em Israel e nos seus colonatos ilegais a taxas muito superiores às registadas na Cisjordânia – entre 2,5 mil milhões e 5,8 mil milhões de dólares, contra apenas 1,5 mil milhões… Um funcionário do Ministério da Economia afirmou: ‘Muitos empresários palestinianos estão a investir em colonatos industriais como Barkan, Ma’ale Adumim [um grande colonato israelita na Cisjordânia ocupada] e outros parques agro-industriais no Vale do Jordão.’”²⁰


Todas as classes da sociedade palestiniana sofrem sob o apartheid israelita e, como vemos em Gaza, o genocídio. No entanto, uma classe capitalista ligada economicamente e subserviente politicamente aos Estados israelita e árabes trairá sempre, no final de contas, a luta pela libertação da Palestina.


Uma estratégia para a libertação

A nível mundial, dezenas de milhões de pessoas mobilizaram-se para travar o genocídio em Gaza. Pôr fim, de imediato, ao derramamento de sangue; ao bloqueio de combustível, alimentos e ajuda humanitária; e à tortura física e mental sem precedentes de uma população inteira é, naturalmente, o foco central do movimento.


Mas as exigências vão muito além disso: uma Palestina livre — o fim da ocupação, das leis do apartheid, das colónias de povoamento e da supremacia racial, e o reconhecimento do direito de regresso dos refugiados palestinianos à sua terra natal histórica.


Para além de apoiar firmemente estas reivindicações, argumentamos que elas são incompatíveis com a existência de um Estado sionista colonizador de povoamento; esse Estado tem de ser derrubado e desmantelado. As questões que se colocam são: será isso possível, dadas as actuais correlações de forças? Quem tem o poder de enfrentar um Estado tão militarizado e os seus aliados imperialistas? E, se for possível, que tipo de solução poderá garantir uma libertação genuína e uma paz duradoura para todos?


Estas questões exigem reflexão cuidadosa. O povo palestiniano precisa de uma solução duradoura — não apenas de mais acordos de cessar-fogo, que nunca são fiáveis, dada a natureza maníaca do regime israelita. Ainda assim, estas são questões extremamente difíceis, e enfrentá-las com seriedade pode ser uma experiência desafiante.


Como explicámos na análise anterior — uma análise que é intuitivamente compreendida por muitas pessoas no movimento de solidariedade global —, a opressão do povo palestiniano está entrelaçada com o próprio sistema capitalista e imperialista. Assim, o compromisso de milhões de pessoas em todo o mundo com a libertação da Palestina representa uma ameaça fundamental a esse sistema.


Este entendimento torna as questões relativas às soluções ainda mais complexas do que alguns poderiam imaginar — mas esse tem de ser o nosso ponto de partida. Por mais exigente que seja, elaborar uma solução viável e uma estratégia e tácticas para a concretizar pode trazer a esperança necessária para a causa palestiniana. Aqui, oferecemos as linhas gerais de uma perspetiva marxista sobre estas questões, como contributo para este movimento vital.


Uma das formas mais evidentes de abordar a questão da libertação de um povo oprimido é examinar outros exemplos históricos.


A luta contra o regime do apartheid na África do Sul, que foi derrubado no início da década de 1990, tem servido de inspiração para os palestinianos como exemplo de que um Estado baseado na supremacia racial pode ser derrotado.


O derrube do apartheid foi uma vitória histórica — mas foi uma vitória que ficou muito aquém do que a classe trabalhadora e os negros pobres haviam lutado por alcançar. O movimento revolucionário sul-africano das décadas de 1970 e 80 foi impulsionado pelo desejo de pôr fim à pobreza, à desigualdade e ao domínio da minoria branca — a oposição à exploração económica e à opressão andavam de mãos dadas.


Isto ficou bem expresso na Carta da Liberdade do ANC (Congresso Nacional Africano), adoptada numa conferência com 3.000 participantes em 1955. Embora não fosse um programa abertamente socialista, as suas reivindicações exprimiam o desejo de pôr fim tanto ao sistema de opressão racista como à exploração económica da maioria negra pelo capitalismo do apartheid branco:


“A riqueza nacional do nosso país, património dos sul-africanos, será restituída ao povo; as riquezas minerais do subsolo, os bancos e as indústrias monopolistas serão transferidos para a propriedade colectiva do povo como um todo.”²¹


Em 1994 realizaram-se eleições em que, pela primeira vez, todos os sul-africanos puderam votar, pondo fim ao domínio da minoria branca. Isso foi o culminar de muitos anos de luta, incluindo uma importante campanha de boicote internacional e uma campanha de guerrilha interna, mas sobretudo foi tornado possível por meio da desobediência civil em massa e da luta de classes.


No entanto, nos anos que antecederam a queda do apartheid, o ANC negociou um acordo com a classe dominante colonizadora (que já sabia que o sistema do apartheid era insustentável), traindo a sua própria Carta ao garantir que a classe capitalista branca manteria a sua riqueza e estatuto privilegiado — o que significava também que a maioria negra permaneceria em situação de pobreza.


Hoje, 64% dos sul-africanos negros vivem na miséria, habitando nos townships empobrecidos que foram criados durante a era do apartheid — um exemplo clássico de uma revolução colonial traída.²²


Luta de classes na África do Sul do apartheid

Um tal desfecho está longe de significar libertação, mas vale a pena colocar a questão: será concebível que a classe dominante do Estado israelita aceitasse um arranjo semelhante — a criação de um Estado democrático único em que a sua riqueza e privilégios fossem garantidos, mas onde existisse igualdade formal para todos os cidadãos na Palestina histórica?


A dura verdade é que não é. Pelo contrário, nos últimos 30 anos, sucessivos governos israelitas mostraram-se inflexíveis na sua oposição até mesmo à criação de um Estado palestiniano com base nas fronteiras de 1967, ou seja, em 21% da Palestina histórica — quanto mais ao desmantelamento do racismo institucionalizado do Estado sionista e à concessão aos palestinianos do direito de regresso.


Na realidade, toda a lógica do sionismo actualmente é a de desapossar os palestinianos e construir um Estado judeu maioritário sobre as suas terras, com a sua exclusão efectiva da economia e da sociedade.


O colonialismo de povoamento na África do Sul tinha um carácter diferente.²³ Uma classe colonizadora branca dominava politicamente com o objectivo de explorar os recursos do país, mas a sua economia dependia inteiramente da exploração da mão-de-obra indígena — as massas negras — para o conseguir.


A economia israelita, por contraste, nunca dependeu da força de trabalho indígena, embora os árabes palestinianos sempre tenham constituído uma minoria significativa da classe trabalhadora dentro das fronteiras do Estado israelita.


O sionismo, ao incentivar os judeus a migrarem para Eretz Yisrael, teve sempre como objectivo construir uma economia esmagadoramente judaica, baseada em capitalistas judeus a explorarem trabalhadores judeus, latifundiários judeus a explorarem camponeses e rendeiros judeus, etc. Em vez de mera exploração brutal, esta forma de colonialismo de exclusão sujeita a população indígena a limpeza étnica brutal e, quase inevitavelmente, a genocídio.


Assim, enquanto a classe dominante branca da África do Sul podia aceitar, a contragosto, uma situação em que o apartheid fosse desmantelado politicamente, confiando que conseguiria continuar a dominar economicamente enquanto o capitalismo fosse mantido; a existência de uma classe dominante israelita sem um Estado colonial e sionista está praticamente excluída.


A natureza do colonialismo sionista tem muitas implicações para qualquer estratégia de derrube do Estado israelita. A classe trabalhadora e os pobres negros constituíam a esmagadora maioria da sociedade sul-africana; tinham o poder social e económico necessário para pôr o regime de joelhos e torná-lo ingovernável.


Em 1985 foi fundada a COSATU (Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos) e, nos dois anos seguintes, os trabalhadores tomaram acções em sectores-chave da economia — transportes, mineração e indústria. Em 1986, perderam-se mais de um milhão de dias de trabalho devido a greves económicas, e outros 3,5 milhões de dias em greves políticas oficiais. No ano seguinte, estes números voltaram a subir. Só no 1.º de Maio, perderam-se 2,5 milhões de dias de trabalho. No total, nesse ano, perderam-se mais de 6,6 milhões de dias de trabalho devido a disputas salariais. Em 1987, as greves duravam em média três vezes mais do que no ano anterior, e a adesão aos sindicatos negros cresceu enormemente.²⁴


As greves e a desobediência civil em massa paralisaram o capitalismo sul-africano; em suma, o seu domínio estava em risco. Esta ameaça de revolução social a partir de baixo levou a concessões políticas por parte de cima — nomeadamente, eleições multirraciais e o inevitável fim do domínio da minoria branca, pelo menos no plano político.


Infelizmente, a classe trabalhadora e os pobres palestinianos não têm o mesmo poder social relativamente ao apartheid israelita. Garantir que assim fosse — que o trabalho palestiniano não fosse necessário — foi sempre uma dimensão consciente do projecto colonial sionista de povoamento. Além disso, os palestinianos enfrentam um Estado altamente militarizado com o apoio total do imperialismo ocidental.


A Primeira Intifada (1987–1993) e os primeiros meses da Segunda Intifada, que começou em Setembro de 2000, testemunharam levantes de massas de trabalhadores e jovens palestinianos que conseguiram infligir verdadeiros golpes ao regime israelita. Foram, aliás, muito mais eficazes do que os métodos do Hamas e de outros grupos islamistas de direita, como os disparos indiscriminados de rockets ou o horrível ataque de 7 de Outubro, em que centenas de civis inocentes foram brutal e desnecessariamente mortos — um acto que apenas serviu para reforçar, e não enfraquecer, o Estado israelita.²⁵


Hoje, as inspiradoras lutas de massas da Primeira Intifada, em particular, podem servir de exemplo crucial de como a auto-organização palestiniana, articulada com a questão de uma resistência armada organizada democraticamente, pode enfrentar o regime sionista.


No entanto, mesmo lutas tão heróicas como estas não serão suficientes. Embora apenas os próprios palestinianos possam liderar a sua luta, a dura realidade é que, sozinhos, não têm o poder necessário para vencer face a tais adversidades. Dado o conjunto de forças que se lhes opõe, precisam de aliados para derrotar o Estado israelita e conquistar a sua libertação. A questão que se coloca é: quem são esses aliados, ou potenciais aliados? Esta é, fundamentalmente, uma questão de classe.


Onde estão os aliados?

Sem dúvida, o local mais óbvio para procurar aliados é o Médio Oriente e Norte de África, que engloba 22 Estados, desde a Mauritânia no oeste até Omã no leste, com uma população de 473 milhões de pessoas — 60% das quais vivem em áreas urbanas — a maioria das quais partilha uma língua comum e muitos laços religiosos e culturais.


Como já referimos acima, no entanto, não são as elites árabes, mas sim as poderosas classes trabalhadoras desses países — como o Egipto e a Tunísia — os aliados naturais dos palestinianos. Essas classes trabalhadoras foram decisivas para derrubar as ditaduras de Hosni Mubarak e Ben Ali, respectivamente, nas revoluções de 2011.


Temos assistido, no contexto do genocídio, à enorme solidariedade que existe dentro dos Estados árabes em relação à Palestina. Por exemplo, em Abril de 2025, realizaram-se protestos em 54 cidades de Marrocos — a 70.ª semana consecutiva de manifestações contra o genocídio em Gaza.²⁶


O regime marroquino, entretanto, é um dos Estados árabes que assinou um acordo de normalização com Israel. Parte deste negócio sórdido consistiu no reconhecimento, por parte de Israel e dos EUA, da ocupação do Saara Ocidental. Mais uma vez, isto demonstra que o abandono do apoio nominal à Palestina é um preço que as classes dominantes árabes estão dispostas a pagar para manter o seu poder e os seus privilégios.²⁷


Uma nova vaga revolucionária — tal como a que em 2011 se espalhou por toda a região do Médio Oriente e Norte de África — está inscrita na própria situação. Nenhuma das questões que deram origem àquelas movimentações foi resolvida: seja a democracia, a desigualdade ou o futuro de uma população marcadamente jovem — 60% têm menos de 30 anos, e a taxa de desemprego jovem é a mais elevada de qualquer região do mundo, situando-se nos 25%.²⁸ De facto, essas questões agravaram-se, tal como o tumulto político na região.


Se uma tal vaga revolucionária reaparecesse, constituiria um poderoso impulso para a luta pela libertação da Palestina. Se as ditaduras fossem derrubadas e governos formados pela classe trabalhadora e pelos pobres chegassem ao poder, estes poderiam fornecer tanto apoio político como assistência material à luta palestiniana.


Outros aliados são as classes trabalhadoras e a juventude da Europa, dos Estados Unidos e de outras partes do chamado “Norte Global”. Trata-se de uma força poderosa e multiétnica que se mobilizou contra o genocídio em milhões de pessoas, em alguns dos maiores protestos de solidariedade com a Palestina na história.


Em Novembro de 2023, estima-se que 300.000 pessoas marcharam em Washington D.C. e 800.000 em Londres — os maiores protestos pró-Palestina alguma vez vistos nesses países. Assistimos também à criação de acampamentos estudantis que começaram nos EUA em 2024, com mais de 3.000 estudantes presos em mais de 60 campi universitários, movimento que se espalhou para muitos outros países, desde o Canadá à Austrália.


A acção dos trabalhadores e dos sindicatos pode ser particularmente eficaz e precisa de ser significativamente intensificada. A recusa em manusear armamento e outro equipamento militar destinado a Israel, bem como quaisquer bens e serviços provenientes deste país, tem de ser colocada na agenda de todas as organizações de trabalhadores. Já vimos exemplos significativos desta abordagem protagonizados por estivadores na Grécia, Catalunha, Índia, Itália e Bélgica.


O papel dos trabalhadores aeroportuários pode também ser crucial para atingir a máquina de guerra israelita. Por exemplo, os controladores de tráfego aéreo poderiam levar a cabo greves para impedir que armamento destinado a Israel atravesse o espaço aéreo dos respectivos países. Isto é particularmente relevante no contexto da Irlanda, onde só em 2024 foram autorizados 1.260 voos com armamento a atravessar o espaço aéreo irlandês, muitos dos quais com destino a Israel, vindos dos Estados Unidos.²⁹


No “Sul Global”, a questão da Palestina veio também expor ainda mais a hipocrisia gritante da chamada “ordem internacional baseada em regras” promovida pelo imperialismo ocidental.


O genocídio em Gaza ocorre em paralelo com os horrores que têm lugar na RDC (República Democrática do Congo), onde forças apoiadas pelo Ruanda invadiram efectivamente o país. O Ruanda é o principal aliado do imperialismo nesta parte de África — um armazém de minerais estratégicos como cobalto, coltan e urânio, cobiçados por grandes corporações.


Crimes como estes contribuíram para aprofundar o sentimento anti-imperialista no mundo neocolonial. Consequentemente, houve mobilizações significativas em apoio à Palestina — nomeadamente, 200.000 pessoas em Kerala, na Índia, em Outubro de 2023, e um número incrível de 2 milhões de pessoas nas ruas de Jacarta, na Indonésia, em Novembro de 2023.³⁰


Dentro de Israel

Não há dúvida de que a solidariedade internacional é vital para os palestinianos, não só pelo impacto moral, como porque uma campanha consistente e coordenada pode ter efeitos reais no isolamento político e económico do Estado de Israel. Se um movimento revolucionário nos Estados Unidos, em particular, conseguisse romper a ligação com o sionismo e pôr fim ao fluxo de apoio político e material, isso seria obviamente desastroso para Israel.


Contudo, há limites ao impacto que acções ou forças externas podem ter sobre a viabilidade de um Estado – a não ser no caso de uma invasão militar por uma força superior, o que não é realmente uma possibilidade (Israel é, afinal, uma potência nuclear). Isto coloca naturalmente a questão essencial de saber se o Estado de Israel pode ser enfraquecido a partir de dentro.


É compreensível que os palestinianos e os seus apoiantes em todo o mundo estejam cépticos quanto a essa possibilidade, tendo em conta a mentalidade supremacista dominante entre uma larga maioria dos judeus israelitas.


Desde 7 de Outubro, o amplo apoio à campanha genocida do governo tem sido evidenciado por várias sondagens de opinião, bem como pelas acções deploráveis dos soldados israelitas recrutados para Gaza e para a Cisjordânia, que se têm envolvido em cânticos odiosos, piadas e zombarias sobre os palestinianos enquanto cumprem ordens assassinas — muito disto registado em vídeos que se tornaram virais nas redes sociais.


Pode ser difícil compreender como é que seres humanos podem manifestar ou albergar atitudes tão monstruosas, e não temos aqui espaço para explorar esse tema em profundidade, mas Naomi Klein ofereceu uma análise útil da sociedade israelita e de como o trauma geracional profundo do povo judeu é sistematicamente manipulado e instrumentalizado pelo Estado de Israel:


“Um dos aspectos mais notáveis da resposta a 7 de Outubro dentro de Israel e em grande parte da diáspora judaica foi a rapidez com que foi absorvido por aquilo a que agora se chama ‘cultura da memória’… houve uma passagem quase instantânea para a recriação gráfica dos acontecimentos de 7 de Outubro como experiências mediadas… muitas vezes com o objectivo explícito de reduzir a simpatia pelos palestinianos e gerar apoio para as guerras em rápida expansão de Israel. Antes de passar um ano, já havia uma peça off-Broadway baseada em testemunhos chamada October 7; várias exposições de arte e pelo menos dois desfiles de moda com o tema de 7 de Outubro… Depois há os filmes sobre 7 de Outubro, já um subgénero emergente… As produções dramáticas levam um pouco mais de tempo, mas há várias em andamento, incluindo October 7, um filme dos criadores de Fauda, bem como a série One Day in October, desenvolvida pela Fox.”


E continua:


“Todos os esforços de comemoração visam tocar os corações das pessoas que não estiveram presentes. Mas há uma diferença entre inspirar uma ligação emocional e colocar deliberadamente as pessoas num estado de choque e trauma. Alcançar este último resultado é o objectivo de grande parte das memorializações de 7 de Outubro que se vangloriam de ser ‘imersivas’ – oferecendo aos espectadores e participantes a hipótese de mergulharem na dor dos outros, com base na premissa de que quanto mais pessoas experimentarem o trauma de 7 de Outubro como se fosse seu, melhor será para o mundo. Ou melhor, melhor será para Israel.”³¹


No entanto, não se trata apenas de uma reacção aos acontecimentos de 7 de Outubro. Na sociedade israelita, é incutida desde cedo uma mentalidade de cerco, com propaganda omnipresente sobre a ameaça iminente de outra ‘Shoah’ (Holocausto) – às mãos dos árabes hostis que os rodeiam. Os palestinianos, e os muçulmanos em geral, são desumanizados através de um racismo aberto promovido pelo Estado, que recorre a tácticas DARVO (negar, atacar, inverter vítima e agressor) de forma quase sectária.


À luz desta ameaça existencial percebida, todas as acções do Estado israelita são deturpadas e apresentadas como defensivas. É desnecessário dizer que esta situação é grotesca, e um insulto não só para os palestinianos como – tal como têm salientado grupos como o Jewish Voice for Peace – também para os judeus, em especial os sobreviventes do Holocausto.


A proposta sionista é que a segurança e a liberdade dos judeus só podem ser alcançadas com base na opressão de outro povo e na criação de um Estado etno-supremacista, e a maioria da população israelita infelizmente comprou esta ideia.


No entanto, a sociedade israelita não é homogénea. Existem nela divisões de classe, como em todas as sociedades capitalistas, e várias camadas da sociedade judaica israelita sofrem discriminação e opressão: judeus etíopes, mizrahim (orientais) e russos sofrem racismo e constituem alguns dos sectores mais pobres desta sociedade.


Apesar de gozarem de vantagens materiais e sociais significativas em comparação com os palestinianos – resultantes da posição privilegiada de Israel face ao imperialismo – é verdade, ainda assim, que a perpetuação da opressão palestiniana não está, em última análise, nos interesses da classe trabalhadora judaica israelita. A libertação social e económica dos trabalhadores e oprimidos na sociedade israelita nunca será alcançada dentro de um Estado construído com base numa ideologia supremacista.


Isto é válido apesar do grau aterrador com que, neste momento, a maioria da população foi levada a alinhar com a propaganda sionista genocida. Longe de constituir um refúgio seguro, os dirigentes sionistas oferecem aos judeus israelitas comuns um futuro de militarização permanente, guerra, autoritarismo crescente e desigualdade. Segurança e paz, que muitos israelitas genuinamente desejam, não podem ser construídas com base na ocupação e no genocídio.


É igualmente ilusório acreditar que, enquanto se mantiver o status quo do apartheid, os grupos de judeus israelitas que sofrem opressões comuns a todas as sociedades capitalistas – mulheres, pessoas LGBTQ, pessoas racializadas, pessoas com deficiência – possam alcançar a liberdade.


Pelo contrário, o chauvinismo tóxico usado para justificar a ocupação militar permanente leva inevitavelmente a uma intensificação de outras ideias reacionárias que atacam todos os grupos oprimidos. Por exemplo, desde o início do genocídio registou-se um aumento de 127% no número de ataques a pessoas LGBTQ dentro da Linha Verde.³²


Romper com o domínio do sionismo

Dentro das fronteiras do Estado israelita anteriores a 1967, vivem cerca de 10 milhões de pessoas, das quais pouco mais de 20% são árabes palestinianos e quase 75% são judeus. Enquanto o Estado sionista puder contar com a lealdade da grande maioria desses 7,5 milhões de judeus, a sua posição continuará bastante segura.


Assim, continuará a usar todos os meios ao seu dispor, por mais nefastos que sejam – religião, racismo, mito, medo, militarismo – para manter o controlo sobre os corações e mentes da população judaica. Consequentemente, quebrar esse domínio – ou pelo menos o de uma parte significativa da população judaica israelita – tem de ser um objectivo estratégico vital para o movimento de libertação palestiniano. Por mais improvável que isso possa parecer no contexto actual, acreditamos que é uma possibilidade – e uma pela qual vale a pena lutar.


Sem dúvida que a sociedade israelita apresenta, como já foi referido, uma cultura de chauvinismo e racismo mais extrema do que a maioria das sociedades capitalistas. Mas vale a pena lembrar que todas as classes dominantes exercem uma enorme influência sobre as sociedades que governam: através do controlo das instituições do Estado, da religião organizada, dos meios de comunicação impressos e digitais, do sistema educativo, e por aí fora.


Para qualquer movimento revolucionário ter sucesso, é necessário desafiar e superar essa influência – e a única forma de o fazer é precisamente através do processo de luta revolucionária: experiências de massas que envolvem diálogo, acção, conflito e confronto com outros grupos e classes, que podem transformar profundamente a consciência das pessoas – de formas que, noutras circunstâncias, pareceriam impossíveis. Como escreveu Karl Marx:


“Tanto para a produção em larga escala desta consciência comunista, como para o próprio sucesso da causa, é necessária a transformação em larga escala dos [seres humanos]; transformação essa que só pode ocorrer através de um movimento prático, de uma revolução. Esta revolução é necessária, portanto, não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de outra maneira, mas também porque a classe que a derruba só na revolução se conseguirá libertar de toda a imundície acumulada ao longo dos séculos e tornar-se capaz de fundar a sociedade de novo.”³³


Isto aplica-se, de forma fundamental, também à classe trabalhadora em Israel. As ideias supremacistas que predominam são produto da vida num Estado etno-nacionalista, mas nem essa sociedade nem essas ideias são fixas ou imutáveis. Seria um erro estratégico pensar e agir como se o fossem – como infelizmente fazem alguns sectores do movimento de solidariedade com a Palestina.


Mesmo nos últimos 18 meses, surgiram algumas fissuras dentro da sociedade israelita. Houve protestos significativos envolvendo centenas de milhares de pessoas a exigir um acordo para pôr fim à ‘guerra’ em Gaza em troca da libertação dos reféns israelitas capturados a 7 de Outubro. Não devemos alimentar ilusões de que esses protestos representem um movimento de solidariedade com os palestinianos, mas demonstram uma contestação à política do governo israelita.


Esse movimento incluiu a realização de uma greve geral em Setembro. O Socialist Party escreveu, na sequência dessa greve:


“Os israelitas comuns têm razão ao dizer que este governo está-se completamente a marimbar para o destino dos reféns que permanecem em cativeiro e, de forma mais geral, que Netanyahu e companhia não se preocupam com a segurança das pessoas comuns em Israel. Contudo, por cima de todas as lutas na sociedade israelita paira uma questão: a contínua opressão e ocupação do povo palestiniano – opressão que, há quase um ano, se manifesta num verdadeiro genocídio. Enquanto o movimento de protesto não reconhecer isto e não se posicionar contra esta realidade, permanecerá um movimento profundamente contraditório: contra o criminoso Netanyahu, mas sem pôr em causa o fundamento das políticas que ele prossegue – o próprio Estado sionista.”


Um desenvolvimento pequeno mas significativo tem sido a recusa de alguns jovens em servir no exército israelita no contexto do genocídio. Uma dessas objectoras é Ella Keidar Greenberg, uma jovem trans e activista socialista que foi presa por se recusar a servir. Tinha já participado no movimento Juventude Contra a Ditadura, que surgiu durante os protestos contra os planos do governo Netanyahu em 2023 para transferir poderes do Supremo Tribunal para o executivo.


Essa carta, assinada por 230 jovens em Setembro desse ano³⁴, afirmava de forma clara que se recusavam a servir no exército, ligando a questão do enfraquecimento dos direitos democráticos na sociedade israelita à ocupação das terras palestinianas e à opressão do seu povo. Numa entrevista recente, Ella fez uma ligação comovente entre a opressão das pessoas trans e a oposição à ideologia do Estado capitalista israelita:


“Enquanto pessoas trans, desafiamos o mesmo sistema rígido, patriarcal e binário de papéis que exige que sirvamos – essas estruturas de homens e mulheres, pais e mães, que produzem mais uma geração de soldados e trabalhadores. Nós interrompemos esse sistema, e é por isso que assustamos tanto o regime e somos tão facilmente usados como bode expiatório – estão sempre a voltar a atacar-nos.


Acho que quem recusa o recrutamento desafia a narrativa militar israelita da mesma forma, porque não cumprimos o papel que nos é atribuído. Não acho que seja coincidência que, depois de ter quebrado uma das normas mais básicas, comecei a questionar outras cada vez mais fundamentais. E sim, para mim, enquanto pessoa trans, quero liberdade para mim e para todas as pessoas. Não estou interessada num ‘direito igual’ de oprimir os outros [servindo no exército], nem num passe de entrada no sistema existente – prefiro resistir-lhe do que integrá-lo.”³⁵


A luta palestiniana deve procurar explorar as contradições e os questionamentos dentro da sociedade judaica israelita. Isso implica desenvolver um programa que contraponha à propaganda sionista uma explicação clara de que o domínio do imperialismo, das ditaduras oligárquicas e do próprio sionismo só pode oferecer um futuro de miséria e destruição.


Um programa de mudança socialista na região – com governos da classe trabalhadora e das massas oprimidas que tomem posse pública e controlo democrático sobre a vasta riqueza e os recursos da região, e planifiquem o seu uso no interesse de todos, defendendo o direito à autodeterminação nacional de todos os povos – poderia romper pelo menos uma parte da classe trabalhadora israelita com a sua classe dominante e com a ideologia desta.


A classe trabalhadora palestiniana dentro da Linha Verde poderia desempenhar um papel decisivo numa abordagem deste tipo, dada a sua proximidade aos trabalhadores e jovens judeus israelitas. Poderia tanto desafiar o chauvinismo que perpassa esta sociedade como fazer um apelo à união na luta por uma sociedade onde palestinianos árabes e judeus israelitas possam viver em igualdade, do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo.


Libertação através da revolução socialista

A luta por uma sociedade socialista democrática como esta teria por base o empoderamento da classe trabalhadora e de todos os oprimidos por este sistema. Não estaria confinada às fronteiras da Palestina-Israel, mas implicaria a criação de um Médio Oriente e Norte de África socialistas e democráticos, onde as massas trabalhadoras tomem o controlo das suas sociedades, das suas economias e das suas relações internacionais.


Em vez de ditadura, pobreza e divisão, poderia florescer uma democracia genuína – baseada na cooperação e solidariedade, em que os direitos das minorias estivessem garantidos. Todas as “soluções” oferecidas pelo capitalismo e pelo imperialismo implicaram, na realidade, a continuação do domínio do sionismo e da subordinação dos palestinianos. Só com o desmantelamento do sistema de exploração capitalista e dominação imperialista sobre o qual foi construído o Estado israelita é que se pode abrir um caminho verdadeiramente novo.


Dentro desse enquadramento, a autodeterminação e a libertação palestinianas poderiam ser alcançadas: o derrube do Estado sionista baseado na supremacia étnica, o desmantelamento dos colonatos, do apartheid e do colonialismo, e a igualdade total para todos.


Isto tem de incluir o direito de regresso dos refugiados palestinianos – aqueles deslocados pela Nakba e os seus descendentes. Todas as fracções da classe dominante israelita sempre rejeitaram veementemente esta reivindicação justa porque percebem, correctamente, que a sua implementação representaria uma ameaça existencial ao seu Estado de apartheid, dado que os palestinianos passariam a constituir uma maioria clara entre o rio e o mar.


Contudo, os dados disponíveis também mostram que a repopulação das aldeias palestinianas com o regresso dos refugiados não teria de implicar qualquer deslocação significativa de judeus israelitas. Implicaria, no entanto, uma reestruturação profunda da posse e controlo da terra.


Embora algumas localidades tenham sido construídas sobre ou transformadas, há vastas áreas subutilizadas. O espaço e os recursos necessários para viabilizar o regresso existem de facto – a esmagadora maioria dos judeus israelitas vive actualmente em apenas 6% do território dentro da chamada ‘Linha Verde’, um dado impressionante que evidencia a escassez artificial criada pelas políticas fundiárias sionistas.³⁶


A luta para derrubar e desmantelar o Estado sionista exige oferecer uma alternativa aos judeus israelitas, que constituiriam uma minoria nacional numa Palestina livre. Rashid Khalidi, no seu livro A Guerra dos Cem Anos à Palestina, aponta que o sionismo foi simultaneamente um projecto nacional e um projecto colonial de povoamento.³⁷ Os líderes desse projecto foram extremamente bem-sucedidos nos seus esforços para criar uma consciência e identidade nacional entre os judeus israelitas – e esta é uma realidade com a qual é necessário lidar.


Com o fim de qualquer regime de supremacia judaica, o direito à autodeterminação poderia ser estabelecido para ambos os povos numa base verdadeiramente igualitária. A concretização desse direito seria uma questão de acordo mútuo – podendo assumir, por exemplo, a forma de um Estado binacional socialista em toda a Palestina histórica, o que seria, em muitos aspectos, o desfecho mais desejável.


Poderia também significar a criação de dois Estados socialistas distintos, com fronteiras livres e abertas, onde os direitos das minorias nacionais fossem garantidos, se assim fosse a vontade expressa dos povos envolvidos. Nenhum grupo pode ser forçado a viver num Estado único contra a sua vontade.


O horror, a devastação e o trauma provocados pelo genocídio em Gaza e por 77 anos de terror sionista são impossíveis de compreender totalmente – excepto, claro, para os palestinianos: são eles que o vivem, que o enfrentam todos os dias. Só isso já é inspirador. Se o genocídio mostrou com nitidez a urgência de uma mudança socialista e revolucionária, então o espírito indomável do povo palestiniano deve infundir-nos a todos com a coragem e determinação necessárias para concretizá-la. “Chorai os mortos, lutai como o diabo pelos vivos” – estas palavras continuam hoje a fazer todo o sentido. Lutemos pela liberdade da Palestina e da humanidade inteira deste inferno capitalista de destruição ambiental, pilhagem imperialista, políticas fascizantes e desigualdade obscena.


Notas

1. Caolan Magee, 31 Mar 2025, ‘Meta profits as ads promote illegal Israeli settlements in West Bank’, www.aljazeera.com

2. Sian Cain, 14 Mar 2025, ‘No Other Land director calls Florida mayor’s campaign against his film ‘very dangerous’’, www.theguardian.com

3. Ben Lynfield, 21 Aug 2023, ‘An empowered settler movement relishes chance to ‘Judaise’ the Galilee’, Middle East Eye, www.middleeasteye.net

4. 22 Jan 2025, ‘Why is the land in the West Bank being sold off to US citizens?’, The Take https://open.spotify.com

5. Andreas Malm, 8 April 2024, ‘The Destruction of Palestine Is the Destruction of the Earth’, www.versobooks.com/blogs

6. Nathan Weindstock, 1979, Zionism: False Messiah, InkLinks, page 12

7. Quoted in Amandla Thomas-Johnson, 6 Dec 2017, ‘The Balfour Declaration and 67 words that changed the world’, Middle East Eye, https://www.middleeasteye.net

8. Andreas Malm, 8 April 2024, ‘‘The Destruction of Palestine Is the Destruction of the Earth’, www.versobooks.com/blogs

9. Adam Hanieh, ‘Petrochemical Empire’, July 2021, New Left Review, www.newleftreview.org

10. Adam Hanieh, 2024, Crude Capitalism, Oil Corporate Power, and the Making of the World Market, Verso, p 57

11. Quoted in Moshé Machover, 20 Nov 2006, ‘Israelis and Palestinians: Conflict and Resolution’, Marxists Internet Archive, www.marxists.org

12. Norman Finkelstein, 2003, The Holocaust Industry: Reflections on the Exploitation of Jewish Suffering, Verso

13. International Jewish Anti-Zionist Network, 2012, Israel’s Worldwide Role in Repression

14. Phil Marshall, 1986, ‘Palestinian nationalism and the Arab revolution’, Marxists.org, www.marxists.org

15. 27 Sept 2024, ‘Saudi crown prince said he personally ‘doesn’t care’ about Palestinian issue’, Middle East Eye, www.middleeasteye.net

16. 6 Nur Arafeh, 2 Feb 2024, ‘Economic Injustice is Anchoring Itself in the Arab World’, Carnegie Endowment, https://carnegieendowment.org

17. Hamza Culin, 13 July 2020, ‘A Marxist Guide to Understanding the Gulf States’ Political Economy’, Jacobin, www.jacobin.com

18. Phil Marshall, 1986, ‘Palestinian nationalism and the Arab revolution’, Marxists Internet Archive, www.marxists.org

19. Ben Hattem, 13 Feb 2015, ‘Palestine’s Other Land War’, Middle East Eye, https://www.middleeasteye.net

20. Tariq Dana, 14 January 2014, ‘The Palestinian Capitalists That Have Gone Too Far’, Al-Shabaka, www.al-shabaka.org

21. African National Congress, 26 June 1955, The Freedom Charter, Marxists Internet Archive, www.marxists.org

22. Phumlani M. Majozi, 25 Aug 2024, ‘What Will Help Poor Black South Africans’, Politicsweb, www.politicsweb.co.za

23. The Marxist writer Moshe Machover has written useful articles on the nature of different forms of settler colonialism, such as ‘Machover, 22 Nov 2029, Two impossibilities’, Weekly Worker, weeklyworker.co.uk

24. William A. Pelz, 2023, ‘South African Black Workers Strike’, EBSCO, www.ebsco.com

25. Explicámos isto com mais detalhe no nosso panfleto de novembro de 2023, Genocídio em Gaza e a Luta para Derrotar o Regime de Terror de Israel, no qual escrevemos: “Tem sido utilizado pelos sectores dominantes no Ocidente para tentar reforçar o apoio internacional ao regime israelita, num contexto em que esse apoio tem vindo a diminuir. Dentro de Israel, criou um clima de unidade nacional, que permitiu ao regime levar a cabo os seus crimes de guerra com ainda maior impunidade. Na realidade, do ponto de vista puramente estratégico, este ataque foi, na melhor das hipóteses, um ato de desespero, não parte de um plano sério para derrotar o Estado israelita.”

26. 4 April 2025, ‘Moroccans Mark 70th Week of Nationwide Protests Against Gaza War and Normalization’, Watan, www.watanserb.com

27. 17 July 2023, ‘Israel recognises Western Sahara as part of Morocco’, www.aljazeera.com

28. Masood Ahmed, June 2012, ‘Youth Unemployment in the MENA Region: Determinants and Challenges’, IMF, www.imf.org

29. Michelle McGlynn, 2 January 2025, ‘More than 1,260 Flights Approved to Carry Munitions Through Irish Airspace in 2024’, www.irishexaminer.com

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